Um caminho para o céu

Um caminho para o Céu

...Um homem andava pela estrada de chão, com as costas tão esticadas que faziam uma curvatura para dentro enquanto estufava seu peito. Seus olhos azuis, quase um metro e noventa acima do chão, parecem marejados e acompanham as muralhas do grande reino, cinzentas como seus cabelos e suiças...



...Contando histórias de seu próprio passado as botas negras do homem, adornadas para seus pés pelo tempo de uso, caminham para a entrada da cidade - talvez encontre alguma paz por aqui - acompanhados de um gibão de predominante azul claro cujo tingimento amador revela algumas manchas em outros tons e um macacão branco puído, manchado de um marrom claro nas pernas devido à poeira das estradas e desfiado nas barras...



...Acompanhando seus passos está a Lamento da donzela, uma espada longa com mais de metro e meio que belisca a terra logo antes de seus lentos passos. Apesar do tamanho, outras características chamam mais a atenção, a lâmina foi colorida em tons de azul e logo acima de onde deveria haver o botão, claramente quebrado, há uma face em tom mais escuro, seu sentimento é tão expressivo que se torna angustiante encará-la por muito tempo. Ela está... Lamentando.



Ao atravessar a ponte levadiça o som de aço e couro e a vibração em suas costas afasta sua companheira dos olhares mais curiosos - E dos mais gananciosos, não que fosse a lâmina de um herói, mas havia boa quantidade de aço ali, o que renderia mais três ou quatro espadas - e propõe-se a caminhar entre as multidões...



...Ouve um estranho sermão sobre homens desaparecidos aqui, um cavaleiro rodeando pessoas com seu corcel arranhando a garganta sobre livros e todos os outros zumbidos que compõe uma cidade...

.

Por dias a fio caminhara ao redor das muralhas da cidade com os pés descalços, como que para ajudar a memória com as borras das lembranças de um passado distante. Enquanto beliscava a relva com sua companheira, fez destes momentos um ritual para adquirir a coragem que precisava pra concluir sua viagem.

Então vestiu roupas limpas e apresentou Lamento da Donzela de joelhos àquele a quem devia mais coisas do que poderia imaginar. Gregor o recebeu com seu sorriso maduro, até confuso, quase sem reconhecê-lo, mas quando viu aqueles olhos azuis embotados na face vermelha de choro, o Primeiro Cavaleiro soube que aquela jornada, de algum modo, havia quebrado seu antigo pupilo.

Bem-vindo à casa, cavaleiro Bronze Hoster.



E então contou sua história...

Um homem brande sua espada por muitos anos...
E vai à guerra.

E depois de tudo, retorna ao lar e apresenta sua companheira ao seu velho tutor.
Ele acredita que terminou com a espada.
Mas não importa o que mais ele fará com suas mãos...

...Construir uma casa...
...Amar uma mulher...
...Trocar as fraldas de seu filho...

Suas mãos nunca esquecerão como é manipular uma espada.
E, como cavaleiro, é matar e morrer.

Nós ainda estamos no deserto.


E pulou.

Sentiu as pernas tremerem ao impulsionar o corpo em direção ao vazio e logo a paz que desejava sentir deu lugar às dúvidas e aos medos. Em poucos segundos pode pensar sobre a decisão que tomara, quanta dor sentiria e por quanto tempo ela duraria.

O corpo acelerou, então pensou na donzela e sorriu. Sorriu um sorriso torto, levado pelo vento que deformava seu rosto e deu lugar a um gemido rápido. Tocou a beira do fosso com brutalidade, mas não ouviu seus ossos partindo, seus orgãos derretendo.

Não precisou ver, ouvir ou pensar em mais nada.



Caio em direção ao céu, eu disse meu adeus.
Meu coração está sempre com você agora.
Não questionarei porque tantos tem de morrer.
Minhas preces superam isso.

Porque com todas as coisas que fizemos...
...Isso não importa quando eu voltar para você.

Agora o seu pesadelo vem à tona.

Te arrastou para baixo
Para a companhia dos demônios
Para ser seu convidado eterno
Sua paz de espírito é menor do que nunca.

Odeio distorcer sua mente
Mas deus não está ao seu lado
E é apenas uma velha crença dilacerada

A carne queima, você pode sentir seu próprio cheiro no ar
Porque homens como você tem uma alma difícil de se roubar

......

Não consigo acordar e suar.
Porque meu tormento ainda não acabou
Ainda danço com demônios onde tudo o que há de errado está certo
Onde o ódio não precisa de uma razão
Repugnando o suicídio.

Eu deveria saber o preço do mal.
E dói saber que pertenço a este lugar
Sem ninguém para chamar, com todos para temer.

Acorde!

Acordei com os membros doloridos, mas o que realmente doía era pensar. A cabeça latejava, mas em um lampejo de consciência fui consumido pela dor do arrependimento.

Percebi que o local não me era familiar, a pele de urso sob meu corpo começava a irritar meus braços e pernas, então levantei. Um pouco pela irritação, um pouco pela curiosidade. Sabia que havia sido salvo, quem tivera a bondade para ajudar um corpo dilacerado ao invés de roubá-lo cuidara de mim com muito zelo, assim não tive medo de começar a caminhar.

Com meus primeiros passos senti uma de minhas pernas um pouco rígida, por alguns segundos temi que ficasse coxo, mas me pareceu uma punição razoável à minha ação, então deixei este pensamento de lado, pois no fundo também acreditava que a cura empregada para salvar a minha vida poderia facilmente corrigir uma perna travada.

Senti todo o poder da renovação quando abri as portas para uma sacada e a brisa fresca dos campos passou por mim como carícias. Com os pulmões cheios admirei o horizonte, terra e água, e me apoiei ao parapeito para observar o trajeto dos sóis e rezei para que, embora não pudesse exigir nada, as pessoas que tinham me ajudado me deixassem recuperar a paz que havia atirado da torre.

Então por lá fiquei até o anoitecer, e com a penumbra dando lugar à luminosidade laranja das brasas, adormeci.

Por dias vaguei por aqueles cômodos vazios, meus passos ecoando no solado de madeira que gemia, vez ou outra, sob a pressão do meu corpo.

A pequena ilha parecia criada como lar para aquela pequena fortaleza de toras, logo os dias que utilizei para apreciar a beleza do local foram substituídos pela sensação de encarceramento. Apesar da minha solidão, as refeições sempre apareciam postas à mesa após acordar e mesmo quando tentava enganar-lhes parecia que haviam previsto tudo de antemão.

O manto azul se estendia por todas as direções além do alcance dos meus olhos, de cores tão primas aos do mar, exceto por um pequeno feixe ereto, sozinho, imperceptível se não fossem dias a observar o movimento das água.

A torre.

Então evitei olhar naquela direção. Passei a fazer minhas refeições de costas para o leste, mudei-me para um quarto sem janelas. Também notei que, apesar de toda água, não havia cais ou corda para quaisquer embarcações e, indo contra todas as possibilidades, as refeições continuavam servidas.

- Hoster! Vem aqui!

Então ouvi aquela doce gargalhada e de um salto estava na sala de jantar. Foi quando vi minha bela donzela sentada na mesa, de pernas cruzadas, com um dos pés apoiado na cadeira.

Chorei.

- Por que está chorando, vem aqui...

Usava o mesmo vestido rosa de cetim com uma faixa amarela na cabeça cobrindo parte de seus cabelos escuros que eu vira da última vez. Seu rosto alegre estava perfeito, os olhos escuros, a pela avermelhada e maltratada pelos sóis, a boquinha miúda, quase sempre partida, rápida na fala e no sorriso.

Da última vez, com o rosto cozinhando nas areias quentes de Ankrahmun e a visão tremulando por causa do vapor que surgia do chão, o lenço havia se enroscado nas rodas da carroceria e o vestidinho leve estava encardido com as marcas de mãos e muito sangue. Logo os olhos começaram a arder, suor e sangue os manchavam, então fechou os olhos e contou o tempo para se unir a sua donzela, mas quando abriu os olhos a areia havia esfriado, colado em seu corpo inteiro, como que para unir todas as suas partes. Levantou.

Não podia acreditar, mas ao se aproximar sentiu aquelas mãos tocarem na sua e um abraço apertado envolver seu pescoço - Eu te enterrei, querida -, mas ela parecia não ouvir e então aproveitou aqueles segundos para alimentar a própria alma.

Quando voltaram a se olhar aqueles olhos estavam vermelhos, combinando com a ponta de seu nariz, pequeno demais para seu rosto de menina. Ela desviou os olhos para o lado, então pode perceber seus velhos pertences, armaduras e Donzela, sem lamento, no chão, brilhantes como nos tempos de sua vida no deserto.

Achou estranho unir, mais uma vez, as duas Donzelas de sua vida - brutalidade e inocência - e, embora uma tivesse nascido para proteger a outra, não pareciam combinar e achou que nunca poderia ter as duas ao mesmo tempo. Mas ao som dos incentivos de sua pequena, vestiu.

- A gente já pode voltar agora...

Sua armadura acobreada, que lhe garantira o apelido de Bronze em sua terra, bem combinava com sua espada azulada, de cabo marrom, que insistia em beliscar o chão diante de seus pés. Agora estava diante das estátuas de guerreiros peritos, parecia que estava pronto para voltar e entendeu, enfim, como o destino é implacável em seus desdobramentos. Se nunca tivesse pulado...

Então fechou os olhos e inspirou fundo, sentiu uma estranha brisa bater no rosto. Estava pronto.

Quando abriu os olhos viu o fosso se aproximando e sentiu o impacto de seu corpo na água.
Escuridão.