Mais um ano passou. Em um pequeno cômodo, num ponto vazio do mapa e intocado por olhos humanos, luz e trevas travavam uma longa guerra.
A escuridão havia reinado ali durante séculos, um reino silencioso e repleto de aranhas. Naquele pequeno pedaço de fim de mundo, elas criaram civilizações dignas de odes, cujas histórias encheriam uma biblioteca inteira. Mas o império da escuridão era grandioso e orgulhoso demais, e contos sobre ele passavam para os outros pequenos cômodos do mundo, numa onda de inveja e raiva.
Então houve o ataque da luz. Como um cidadão insatisfeito que abre os portões por dentro para pôr um o fim em um cerco, uma rachadura se abriu, deixando a luz invadir o cômodo.
É claro que a luz não agiu sozinha. Ela pediu aos Sóis e à Lua que agissem em turnos para iluminá-lo, e contou com a presença das serpentes para sempre utilizarem a rachadura, para que mais luz pudesse entrar. As aranhas mais sensatas fugiram dali assim que a luz entrou, sabendo que isso não podia ser coisa boa; as mais tolas ficaram e tiveram um fim trágico.
Em questão de horas, o império da escuridão caiu, e as trevas fugiram para outro lugar, jurando vingança. A queda da escuridão revelou vários segredos, e o mais importante deles foi as cores. As paredes eram de um branco marmóreo, repleto de fungos verdes e marrons, com sinais de ferrugem escondida abaixo de algumas argolas metálicas. O chão formava um mosaico abstrato, coberto por uma grossa camada de poeira e destroços cinzentos que revelou um tapete amarelo e vermelho antiquíssimo na primeira chuva.
E, finalmente, a luz revelou um baú - ou melhor, a sua silhueta. Era o verdadeiro casus belli, a razão pela qual eles foram atacados. E também era o último bastião das trevas, a peça do quebra-cabeça que não se encaixava. O traidor auto-declarado, a exceção que confirma a regra. A luz havia atacado todo o cômodo e despiu cada uma das cores, mas a do baú ela não conseguiu arrancar. Não era negro, pois até o negro refletia a sua indiferença ao mundo e o seu orgulho. Mesmo se alguém lançasse uma luz negra contra um prisma de 8 lados, nenhuma das cores resultantes seria comparável ao baú. A caixa absorvia em si toda luminosidade que chegava nela, de modo que não havia um raio de luz que voltava para contar a sua cor. Era o arqui-inimigo da luminosidade.
A luz tinha medo de se aproximar, e mesmo quando se aproximava a caixa encontrava uma maneira de não deixá-la sair de si. Talvez toda a luz que ela tenha raptado pudesse iluminar mais do que os dois sóis juntos. O baú escondia-se no canto do cômodo na vã esperança de que, caso alguém entrasse, não o visse ali. No fundo, aquilo tudo não passa da ânsia quase humana de cair no esquecimento.