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Quando completou sete anos de idade, Louis ganhou de presente da mãe uma gata ainda filhote, inteiramente preta e de pêlos lisos, a qual deu o nome de Izadora e se apegou facilmente. E do pai, um piano, para então começar a ter aulas de música e línguas estrangeiras com um professor extremamente rígido – que lhe flagelava, com uma rígida varinha, suas mãos, a cada erro ao piano –. Passaram-se meses e Louis tocava melhor seu instrumento, mas ainda cometia erros e o amaldiçoava.
Em uma noite antes do jantar e depois de uma tarde inteira de aula, as mãos do garoto estavam um pouco roxas, doloridas e cansadas, provavelmente, mas ainda serviam para afagar Iza. Ficou, então, um tempo sentado no chão, acariciando a gata como se aliviasse sua tensão. Iza deu um pulo e foi até o banco do piano e miou como se chamasse Louis para tocar. Louis fixou seus olhos na gata que continuava a miar. Foi até ela, colocou-a em seu colo, sentou-se frente ao piano... e começou a tocar. Percebeu suas mãos, sentiu que suas mãos estavam vivas, e faziam movimentos suaves quase que sem querer. Louis fechou seus olhos e continuava a tocar... tão sublime. Louis chorava e tocava uma bela canção, em ritmo alegre. Sua boca não se movia, não sorria. Engoliu em seco, talvez para aliviar o nó que se dava em sua garganta... e chorava!, tocava!, e chorava! Seus pais correram para vê-lo tocar, e ficaram imóveis em um abraço terno, contagiados pela música, observando o garoto tocando tão bem.
Na manhã seguinte, Louis acordou bem cedo com o som dos pássaros. Ficou parado, embaixo de sua coberta, como quem se decidia entre voltar ao sono ou levantar. Iza dormia em seus pés. Decidiu levantar e olhar pela janela. Sula segurava suas lágrimas cinza em cima de Tibia. Tibia carregava o presente verde de seu filho Crunor. Fafnar – Suon a castigue! – e seus raios irritados lutavam contra a triste Sula, no céu, para se aparecer. Crunor e seus filhos se faziam presentes por todos os lugares... Os pássaros cantavam em volta das árvores e as flores dançavam junto às gramas; que vestiam um vestido cor de luta – Ou, quem sabe, cor de uma noite de amor! – entre Sula e Nornur. Ficou parado, embaixo de seu pensamento, como quem se decidia entre voltar à cama ou ir ao jardim. Iza também levantou e se esfregou nas pernas de Louis, como se dissesse “Bom dia!”. Decidiu ir ao jardim.
Desceu as escadas silenciosamente – Iza também o fez –. E quando chegou ao jardim, com menosprezo, olhou as nuvens carregadas, como quem torcia para o sol ganhar a batalha, e, sem cortesia, ouviu a canção dos pássaros, como quem pedia silêncio, e, com vulgar indiferença, sentiu o vento frio que obrigava as flores a dançar, como quem implorava voltar ao seu quarto quente, e, com medo, molhou seus pés no orvalho. Viu um machado fincado em uma árvore, e, como se a árvore pedisse socorro, correu em direção a ela e puxou, com esforço, o machado de seu caule formoso. Iza miou. Segurou o pesado machado nas mãos com sacrifício, mas logo o sustentou em uma só mão, e, como quem deixasse, no chão, seu menosprezo, sua grosseria e sua indiferença um sorriso surgiu-lhe no rosto. Caminhou, ainda com o machado na mão, em direção a casa, e, agora, com cortesia, despediu-se do sol, das nuvens, das flores e dos pássaros com o mesmo sorriso – Iza fizera o mesmo, com graciosidade –.
Ficou frente ao piano, parado, como quem se decidia entre quebrá-lo ou quebrá-lo. Gritou, entusiasmado, e começou a quebrar o piano com o machado... E chorava!, e quebrava!, e sorria!, e gargalhava! Gargalhava! O som parecia-lhe tão belo quanto ao que tinha tocado na noite anterior! Tão mais sublime! E o garoto, cansado, chorando e rindo, ficou ali, no chão, sentado, ainda segurando o machado. O grito, o barulho, fez seus pais acordarem, que logo desceram as escadas para ver o que estava acontecendo.
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Permaneceu parado por instantes. Os olhos de Louis contavam o que o garoto sentiu quando colocou seus pés no salão; admiração e, talvez, um leve espanto. Havia tanta gente naquele baile! Louis agora era um jovem rapaz de dezesseis anos e, com essa idade, sabia se portar como um nobre. Suas pernas, um tanto trêmulas, o guiaram para algum lugar onde pudesse observar melhor as coisas. O salão era tão lindo, tão grande que Louis pareceu confuso com toda aquela gente, com aqueles detalhes, com...
Os cabelos loiros e cacheados, os lábios tão vivos, os olhos castanhos, o jeito meigo e doce que vestia uma túnica verde, que ofuscava todas as pessoas, todos os detalhes, que reduzia o enorme salão a nada. Os olhos de Louis falavam! Os olhos de Louis disseram “Olá!”, e, embora sua feição parecesse fria, foi um cumprimento tão quente. Conversaram, riram, aquietaram-se, e retornaram a conversar, o baile inteiro. Quando se deitou para dormir, o rapaz suspirou um nome. Iza não miou. Depois daquela noite, Louis passou a se encontrar com Belinda pelas tardes, no centro da cidade. Conversaram, riram aquietaram-se e retornaram a conversar, durante todas elas. As folhas começaram a cair.
Belinda pintava quadros, pintava muito bem, e seu modo delicado de ensinar o rapaz deixava-o com mais vontade de aprender. Louis trancava-se em seu quarto com suas telas e tintas e pintava gata, moça e outono. Começou a pintar tão bem que já não tinha tanto receio em mostrar seus quadros à moça. As folhas caiam. Algo fazia Louis distribuir sorrisos pelos lugares que passava.
Em uma tarde, de longe, no centro da cidade, Louis a viu – Novidade! –. Mas nesse dia, os olhos quiseram dizer-lhe algo, porém, como lábios que se calam, fecharam-se. Estava tão graciosa, de graça com outro. Belinda nunca falou que conhecia alguém, nunca disse que estava enamorada com outro, tampouco disse a Louis algo carinhoso. Visível foi o furor que lhe subiu à cabeça... Uma chama que vinha dos pés, que passava pelas pernas trêmulas, ascendia a espinha... Frenesi. Deu meia-volta, e, em passos apressados, voltou para casa. Destruiu todos os quadros que havia pintado de Belinda. Destruiu!, chorou! – e seu choro parecia riso –, pintou!, gata, ódio, inverno. As flores começavam a nascer.
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Ficou sentado, sua respiração mostrava que queria se acalmar. Tentou segurar o choro, mas este saiu violento, sem pedir licença, saiu. Depois de lágrimas, o silêncio. Os cotovelos estavam apoiados na perna, colocou a mão, fechada, perto à boca, como quem pensava. Os olhos do infeliz rapaz fitavam, arregalados, o nada. As lágrimas escorriam no rosto de Louis, e, violento, o choro retornava. O nariz escorria. A saliva misturada com lágrima não servia para molhar a garganta seca, e a respiração voltava a ser ofegante.
A mão de sua mãe, em tempos, quente em seu rosto, estava fria como gelo. Aqueles braços, que davam aquele abraço caloroso, estavam frios... A pele pálida. Louis abraçou tão forte e chorou tanto nos ombros do corpo já sem vida de sua mãe que não queria soltá-la, não queria deixá-la partir. Todos olharam com um olhar penoso para o rapaz. Estremeceu, como se levasse um choque, quando se curvou para beijar, com seus lábios quentes, o rosto gelado de seu pai... como sempre costumava fazer.
Nobres vinham de vários lugares para assistir ao funeral. Cumprimentavam o rapaz, batiam-lhe no ombro e diziam algumas palavras para confortá-lo. “Eles estão em um lugar melhor”, “esses ladrões terão a sua”, era o que escutava, e a cada vez que escutava, seu corpo tremia.
O som de um andar apressado chamou a atenção de todos; Era uma tia, que há tempos Louis não via. Emily – seu nome – correu para dar um abraço no rapaz, e esta chorou. Chorou. E os dois choraram, abraçados. Abraçou-a com tanta força que parecia não querer soltá-la também, até que o abraço foi perdendo a força, perdendo. Os dois se olharam, e nenhum deles disse uma só palavra. Iza miou enquanto se enrolava nas pernas de Louis.
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Louis sorriu quando Iza miou e pulou em seu colo. O cheiro do café era tão forte que o rapaz parecia respirar só para senti-lo. Emily disse “bom dia!” enquanto trazia a bandeja com o café da manhã para servi-lo. Comeu a humilde refeição como se fosse um príncipe. E como príncipe, o rapaz não fazia nada fora deixar em ordem seu pequeno novo quarto, ler alguns livros e escrever seu monótono quotidiano em seu diário. Do resto da casa, Emily cuidava.
– Creeeeeeeeeeeein... Bum!
Louis acordou assustado, ficou imóvel, embaixo de sua coberta, como quem prestava atenção para ouvir mais. Não ouviu. Dessa vez – diferentemente das outras –, o rapaz levantou e foi até a cozinha para trancar a porta. Antes de se aproximar da porta para trancá-la, viu, através dos vidros da janela, um vulto negro pelo jardim. A princípio afastou a visão, mas, com lentidão e curiosidade, aproximou suas sobrancelhas franzidas do vidro. O manto negro colhia flores e mostrava que tinha certa delicadeza nas mãos, parecia até cantarolar enquanto colocava as flores na cesta.
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De longe, atrás daquelas pedras, viu um grupo de pessoas, sentadas em círculo, em torno de um pedestal, todas vestidas com um manto. Observou atentamente, por um vão, o que acontecia. Um daqueles mantos se levantou, caminhou até o centro do círculo e começou a falar em uma língua desconhecida para Louis. Todos se levantaram em seguida, e, sem música, começaram a fazer movimentos como se estivessem dançando. A luz que era produzida pelo fogo instável das tochas fazia parecer que as sombras daqueles vultos tinham vida e dançavam junto a eles.
– Olá, rapaz.
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