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Dizem que uma marca profunda surge em nossos corações quando perdemos algo que amamos.
Primeiro, vem a dor... Tão intensa e incômoda que nos deixa estáticos, distantes da realidade e totalmente indiferentes aos sentidos, dormimos acordados, nossos olhos não focam muito bem e nossa mente se torna totalmente embotada. Em seguida vem o despertar do entendimento, o acordar do transe macio que a mente usa para nos proteger do impacto, da dor e do medo. E quando finalmente estamos curados, decidimos o caminho que devemos seguir, e é esse caminho que, muita das vezes, traça o nosso destino.
Ela vagava a esmo pelas ruas. Duas semanas já tinham se passado desde a luta na taverna, e suas roupas não passavam de trapos sujos e toscamente remendados. Estava magra, não sentia disposição para mendigar - e muito menos para roubar - , suas mãos estavam feridas e a febre queimava-lhe por dentro. Ouvia o rolar das carroças nas ruas de carlin, o zumbido incessante das conversas: Ouro, prata, rainha, cavaleiros de thais, bandidos no deserto. Passava a maior parte de seu tempo sentada na beira de uma viela escura, segurando sua adaga no colo e pensando no que iria fazer. Lembrava-se do irmão, da maldita galinha que tinha roubado e do bêbado que tinha matado. A cena se repetia em sua mente, varias e varias vezes até que ela caísse no sono, e quando isso acontecia, as imagens voltavam em forma de sonho, mais reais e mais dolorosas.
- Eu o matei. Matei-o e ele nunca mais sairá do frio da terra. Será comido pelos vermes, isso não é suficiente? Por que isso não é o suficiente?!... - Sussurrava, sentindo a força esvair-se lentamente de seu corpo.
Levantou-se aos tropeços e cambaleou pelas ruas de Carlin... As pessoas já tinham ido para suas casas, o que deixava as ruas desertas e assustadoras. Arrastou-se pela rua principal, apoiando-se nas paredes de pedra e nos tijolos. Tossia, sentindo o mundo girar ao seu redor e as sombras ficarem cada vez mais escuras. Avistou um cão em pé, com a boca dentro de uma lixeira ao lado de uma casa e aproximou-se o mais rápido que pode, atirando uma pedra pontuda no animal, enfiando a mão dentro do lixo e pegando algumas sobras de jantar. Segurou um pão duro e redondo que tinha sido comido pela metade, uma garrafa com dois dedos de cerveja e um pequeno saquinho rasgado de biscoitos.
Comeu aquilo tudo sem prestar muita atenção... Julgou que não tinha nada muito estragado, já que o lixo não estava ali tempo o suficiente para que isso acontecesse, e em seguida virou a garrafa de cerveja de uma só vez, o que a fez vomitar boa parte do que comeu. Guardou a garrafa dentro do saquinho de biscoitos rasgados e já ia voltando pela rua quando viu um vulto deslizando pelas paredes de pedra. Sentiu o coração disparar e apertou o passo rumo á viela. Já estava quase chegando quando sentiu um par de mãos apertarem seus ombros, levantando-a do chão e fazendo-a soltar a garrafa, que se espatifou no chão da rua. O homem fedia a álcool, era magro, tinha uma barba escura e levemente longa. Usava uma armadura de couro e tinha uma adaga curvada enfiada na cintura. Ela queria gritar, mas sabia que isso não era uma boa ideia. Tentou chutar o homem, rosnando e arfando, até que ele a segurou com mais força e a sacudiu brutalmente.
- Fique quieta, sua vadiazinha! Eu poderia ter te matado, poderia ter cortado esta sua linda garganta num piscar de olhos. Mas o que eu fiz? Deixei você viva...E agora você está aqui, vivinha da silva, por minha causa. Viva o herói! - E soltou uma risada cruel, sacudindo-a novamente - Você não acha me deve um favor, hã? Eu salvei sua vida, honradíssima donzela de Carlin. Você tem dinheiro para pagar por meus serviços? Aposto que não. Mas há outras maneiras de se pagar...
O homem apertou sua garganta e arrastou-a para a viela mais próxima, jogou-a no chão e começou a rasgar suas roupas. O desespero apertava o peito da garota, cada vez mais forte... Era como um punho fechado em volta de seu coração, fazendo seu corpo enrijecer-se por completo e sua mente ficar cada vez mais confusa e embotada. Tentou pegar a adaga, mas o homem segurou sua mão e jogou o metal para longe, fazendo o aço tintilar na viela... Era o fim, pensou. Talvez merecesse aquilo, um pagamento por todos os crimes que já cometera, por ter deixado o irmão morrer, por tudo... E então de repente uma mão enluvada segurou o topo da cabeça do homem e puxou-a para trás, enquanto a outra raspava o aço da faca prateada em sua garganta. O sangue quente choveu sobre o corpo da menina enquanto o homem se engasgava com o próprio sangue, e então ela começou a gritar. O homem jogou o corpo do bêbado para o lado e levantou-a bruscamente, tapando sua boca com a mão... Ele tinha um cheiro estranho, algo que lembrava uma taverna de madeira, com boas bebidas... Ou até mesmo os pinheiros das florestas do norte. Ele apertou ao mão em volta da boca da garota e apertou-a levemente contra a parede, olhando-a nos olhos:
- Shhh, criança. Não queremos mais mortes por hoje, queremos? Você está com febre, faminta e em perigo... Posso te ajudar, mas primeiro diga-me seu nome. - Sua voz era firme e risonha ao mesmo tempo, ele falava como se achasse aquilo tudo muito divertido... Como um jogador prestes a ganhar um jogo.
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M-Me... Meridya, senhor. - Mentiu ela, engolindo em seco, sentindo o medo, a raiva e a febre queimarem dentro de si.
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Uma historinha pra animar isso aqui... Ninguém vai ler mesmo, então foda-se. E isso aqui vai ser usado pra coisas em in. Em Neptera. Quem tiver interessado ou sei lá, só me procurar depois.