OLHOS VERMELHOS~O diário de Erick~ CAPÍTULO 1Ele não devia estar aqui. Eu o havia guardado no fundo da gaveta , disso eu tinha certeza. Mas, subitamente, ele apareceu sobre minha cama quando acordei. Era meu diário. O caderninho preto de tantos anos atrás, no qual eu costumava escrever e desenhar, registrar meus medos, frustrações, alegrias e desejos. O que ele estava fazendo fora da gaveta? Eu não costumava tirá-lo dali.
Abri o diário. Era possível reconhecer minha letra de criança, meus desenhos benfeitos para a idade. Eu escrevi muito naquelas páginas pequenas e vazias. Também reconheci meus rabiscos e desenhos sobre os mais diversos assuntos que me instigavam na época. Heróis, carros, aventuras, detetives solucionando mistérios, espiões... Tudo era mágico em minha cabeça.
Mas uma sensação estranha atingiu meu peito de súbito. Eu deixei de escrever no diário por uma razão e não pretendia vê-lo novamente. Ele me trazia velhas lembranças, dores antigas que eu não queria sentir novamente. O caderninho preto era sinal de problemas, um livro que insistia em gritar que eu era o culpado, um garoto problemático que já havia feito besteiras demais em seus rasos dezesseis anos.
“Querido diário, por que isso está acontecendo comigo? Estou com medo. Alguma coisa estranha está acontecendo. Os meus desenhos. Eles existem. Sombra saiu daqui. Eu vi. Ele conversa comigo.”
Era o suficiente para atirar o caderno bem longe de mim.
Eu estava pronto para guardar o diário quando, folheando as últimas folhas, achei um desenho que nunca havia feito. Meu antigo amigo imaginário, o Sombra. Seu sobretudo preto, os olhos vermelhos e misteriosos sob o chapéu, as luvas em suas mãos... Eu não havia desenhado aquilo. Sequer era meu jeito de desenhar. Mas o que me transtornava mesmo era a mensagem abaixo da figura. “Saudades”.
Por um instante, senti que meu quarto estava girando. Aquilo tudo era muito confuso, e cheguei até a pensar que fosse uma brincadeira. Mas eu morava unicamente com minha mãe e ela não faria isso certamente.
- Mãe! – gritei. – Você mexeu nas minhas coisas?
Sua voz doce veio da cozinha, no andar abaixo.
- Não, querido! Você sabe que não entro no seu quarto!
Estranho.
Ninguém além de minha mãe poderia ter mexido no diário. Como aquele desenho foi parar ali?
Resolvi guardá-lo na bolsa da escola.
Desci à cozinha e encontrei mamãe preparando o desjejum. Cláudia Wisehands. A mulher mais perfeita do mundo. Cabelo negro e ondulado, olhos castanhos, pele branquinha, pequena em relação a mim. Aquela mulher era meu porto seguro. Estava no escasso grupo de pessoas em que eu confiava. Além dela, só restavam a Manda e a doutora Regina, minha psicanalista. Outrora meu pai se incluísse nesse grupo, até sua inevitável morte. Nunca me senti tão culpado por algo. Nunca deixei de me arrepender, de castigar a mim mesmo. A morte de papai foi culpa minha. Eu criei aquele incêndio. Estava tão atordoado. Eu era uma criança, sim, mas devia estar ciente de meus atos, não é? Acho que não devia ter confiado no Sombra, mesmo que ele parecesse tão inteligente e confiável. Ele me dizia para desenhar fogo, pois gostava do jeito que eu rabiscava labaredas. Em poucos minutos, parte da casa ardia em chamas. Os bombeiros insistiam em dizer que foi um acidente. Vazamento de gás. Mas eu e somente eu sabia que o incêndio tinha um culpado. Era tão difícil aceitar minha culpa quanto tentar expô-la a alguém. Sempre permaneci calado sobre isso. Sempre fui um covarde impulsivo que conseguia trancar os próprios segredos dentro do coração, mas sequer podia impedir a si mesmo de ter um ataque de raiva.
- Estou fazendo pão com manteiga na chapa, Erick – mamãe sorriu.
Sorri de volta.
Minha mãe era uma artista. Não era famosa, mas tinha seu devido reconhecimento no mundo da arte. Ela conheceu papai numa exposição aqui no Brasil. Meu pai era um grande empreendedor norte-americano. Jason Wisehands. Ele comprava todo tipo de arte para, então, revender. Foi assim que deixou a mim e minha mãe uma casa enorme num bairro nobre da cidade.
Terminei o desjejum, me aprontei e fui para a escola. Sim, minha família era rica, mas isso não me impedia de ir a pé ao colégio, até porque ele ficava bem próximo de minha casa.
Mamãe queria me colocar num colégio para burgueses no centro da cidade, porém nunca aceitei a ideia. Minha melhor amiga estava ali. Assim como eu precisava dela, porque não tinha mais ninguém com quem contar, ela precisava de mim. A Manda não era uma garota problemática, entretanto, eu sabia que ela passava por maus bocados alguns momentos.
Desejei encontrá-la o mais rápido possível. Talvez ela tivesse conselhos sobre o desenho suspeito que apareceu em meu diário.
“Saudades.” Como uma única palavra podia libertar tantas amarguras e reviver tantos fantasmas?
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