Pavol Rottenhearth é filho de Ricken Rottenhearth, um importante ferreiro na era dourada de Venore. Isso tudo aconteceu há mais de 40 anos, o que nos dá três gerações inteiras de Rottenhearths. Por ora, trataremos Ricken Rottenhearth apenas por “ferreiro”, mas é sabido que ele se ocupava de diversas outras funções, das quais a forja é a que mais se destaca. Essa família tem um antigo estabelecimento em Venore, já existente muito antes de algum venoriano poder se autodenominar “Rottenhearth”, mas cuja função primitiva não é mais lembrada nem pelos antiquíssimos documentos assomados nas bibliotecas de nossa cidade. Essa forja é tomada por um ponto turístico da cidade, pois há muitas gerações a família se ocupa com a confecção de armaduras, espadas, machados, maças, escudos e todo tipo de trabalho em aço. Os Rottenhearth são uma família tradicional em Venore; correm boatos de que são ensinados desde a primeira infância a trabalharem na forja, passando mais tempo na oficina do que fora dela. Jamais essa lenda foi confirmada, mas é fato que os produtos Rottenhearth são notados por serem da melhor qualidade em todo o mercado de Venore; assim, apenas a informação de que essa ou aquela peça fora trabalhada por mãos dessa família eleva astronomicamente seu preço, mesmo que na prática não demonstre nenhuma diferença.
Há algo de peculiar nessa família sobre o qual o leitor deve estar familiarizado. Os Rottenhearth são ensinados desde pequenos que as raízes da família estão nos tempos dos assaltos das valquírias, com o casamento do venoriano Martus e a valquíria Valsa. Um detalhe interessante é que, em descompasso com a maioria dos contos, foi a mulher quem tomou o homem por prisioneiro, não vice-versa. Martus seduziu a mulher enquanto prisioneiro, e, quando a guerra abrandou, casaram-se. Naturalmente, o casamento foi repudiado pela sociedade venoriana, mas o foco deste parágrafo não é o relacionamento entre os dois, mas sim aquilo que eles fundaram. Os dois elaboraram uma língua artificial que usariam para comunicar entre si, passada de geração em geração. A língua foi chamada de Avarí, não se sabe se nomeada pela própria família ou pelo povo que, ouvindo amiúde a conversa incompreendida entre eles, nomeou o idioma por uma das suas palavras mais frequentes. É uma linguagem semelhante à Língua Geral e com algumas pinceladas do Amazônico (certos intelectuais que a ouviram puderam até notar semelhança no Órquico). O Avarí é guardado a sete chaves pela família, sendo ensinado a três tipos de pessoas: os filhos, os seus cônjuges e, em raros casos, os agregados à família. Em todas as ocasiões, jura-se solenemente que não será repassado a ninguém, sob a pena de maldição pela família – nada mágico, apenas a promessa de que não serão fornecidos com os produtos Rottenhearth tampouco poderão estabelecer contato com eles. O idioma, somado à profissão milenar de forja, dá a família certo requinte nobre – sabe-se que o filho mais novo de Martus, Sarmano, comprou o título de Visconde de Escapula, mas o viscondado em questão foi arrasado dois anos depois da compra por bandidos, e a família não fez questão de recuperá-lo.
Iniciei a história por Ricken e seu filho; depois, contei rasamente a história de seus ancestrais e suas peculiaridades. Agora escreverei mais longamente sobre esse ramo mais recente dos Rottenhearth, desde Ricken até seus cinco filhos.
Ricken Rottenhearth, como escrevi acima, era um artesão de primeira. Como um ferreiro, suas peças eram bastante características e os melhores mercadores podiam diferenciar que fora forjada pelo grande Ricken apenas pela cor do metal. Não era daquele cinza sem-graça que vemos nos céus nublados; eram azuladas, do tipo que mostra ondulações mais claras quando refletida à luz de uma vela. O povo dizia que o azul vinha de um metal raro que ele misturava ao carvão e ao ferro, o que deixava o metal duro como diamante; os desafetos da família timidamente acusavam Ricken de envolver bruxaria em seu trabalho, mas isso nunca fora levado a sério pelas autoridades. Os mercadores especializados nesse tipo de produto afirmavam que o metal que Ricken produzia era trabalhado durante meses a fio, dobrado e redobrado copiosamente, até que adquiria a tonalidade característica e a dureza única. Além do metal apreciado, suas peças eram todas bastante adornadas com arabescos por toda a superfície; era uma decoração um tanto exagerada, alegavam os inimigos dos Rottenhearth, mas agradava muito a clientela. Ricken foi o responsável por fazer com que o nome Rottenhearth pudesse ser reconhecido em regiões longínquas do continente, em especial na colônia de Edron, onde a guerra contra os bandidos estava a todo o vapor.
Ricken sempre foi talentoso, mas isso só se manifestou depois que sua primeira filha nasceu. Antes disso, ele era do tipo boêmio, que passava a maior parte do tempo em tavernas do que na forja, onde deveria ajudar o pai, Verto, em seus trabalhos. As poucas peças que ele forjou no período estão encaixotadas no porão da casa Rottenhearth, onde os olhos da clientela não podem ver – era uma vergonha para o pai. Como todo homem boêmio, ele ingressou na vida sexual precocemente; quando contava 14 anos, uma garota apareceu grávida às portas da forja, alegando que Ricken era o pai da criança, ao que foi respondido com insultos dele. Quando, mais tarde, ele admitiu a paternidade, Verto obrigou-o a se casar com a garota, Catarina.
A filha nasceu uma aberração. Não se pode dizer se era uma ou duas; na região abdominal, havia uma protuberância semelhante a uma perna, mas totalmente deformada. Era como se um médico havia cortado a perna de uma segunda criança e anexado à barriga, sem que houvesse vestígio da costura. Logo que os padres viram a criança, no próprio parto, eles condenaram a criança e recomendaram o seu envenenamento naquela noite – aquela aberração era uma criatura de Zathroth, para os religiosos. Como Verto Rottenhearth era devoto, obrigou o filho a se livrar da neta, mas Ricken respondeu isso com protestos. Se, no início do casamento obrigatório, ele odiava a esposa, o amor por ela cresceu à medida que crescia o ventre. Por isso, no parto, defendeu ardorosamente a vida da criança, insinuou que aquilo era “apenas um defeito, logo iria de se consertar”. Quando viu que Verto não se curvaria à sua vontade, Ricken subtraiu uma quantia de ouro do cofre familiar e fugiu com Catarina para uma forja abandonada na periferia da cidade, cujo dono vendeu-a por pouco mais de um milhar de moedas em um piscar de olhos. Quando Verto viu que aquilo se tratava de uma fuga, chorou; dias mais tarde ele viria a descobrir a localização exata de seu filho e nora, mas não fez questão de chamar as autoridades para trazê-los de volta.
Na nova casa, Ricken viveu dois anos de amor com Catarina. Os vizinhos comentavam frequentemente sobre os barulhos grotescos que ouviam, em especial durante a noite, mas sempre falavam disso entre risos, sem maldade. No final do segundo ano nasceu nosso Pavol, que nada tinha de especial que o diferenciava das crianças de sua idade. O maior problema era a filha, nomeada Vitória, diferente do costume dos Rottenhearth de nomear os filhos na sua própria língua. Era muito frequente que os vizinhos vissem médicos indo à casa da família, muitas vezes durante a semana, pois a garota tinha algum tipo de doença rara que a fazia desacordar várias vezes ao dia. Nos primeiros meses, a fortuna que Ricken conseguiu surrupiar pagava bem os médicos; depois de certo tempo, ele teve de aprender a forjar em sua casa, e foi aí que seu talento manifestou-se. Trabalhava noite e dia, mas após algum tempo o dinheiro que ele conseguia não só pagava os médicos como também crescentemente ele obtinha lucros. No final dos dois anos em que trabalhava na forja, ele conquistou tal renome que nem precisava apresentar-se por Rottenhearth para vender a grandes cavaleiros.
Enquanto isso, Verto agonizava na mansão Rottenhearth (nota: não era exatamente uma mansão, apenas uma grande forja sobre a qual morava a família inteira). Ricken era filho único e Verto era viúvo; deste modo, ele se viu sozinho na mansão. No início, para compensar a solidão, trabalhava durante todo o dia na forja: parava apenas para dormir, comer e, raramente, tratar de negócios no balcão. Enquanto seus lucros cresciam exponencialmente, ele ficava mais deprimido vendo que a forja não substituiria o filho perdido. Nem passava pela sua cabeça reconciliar-se com ele: era orgulhoso demais. Dentro de si, porém, o filho fora perdoado no dia seguinte em que fora embora. O trabalho em excesso extenuou-lhe os músculos, e ele foi obrigado a se aposentar com uma fortuna considerável (a sua desistência foi motivo, também, para o sucesso de Ricken). Prostitutas frequentavam a mansão Rottenhearth várias vezes na semana; as festas que ele dava eram mensais. Ao cabo de um ano e meio, ele foi acometido com uma doença misteriosa e teve de ficar de cama – dizem os médicos que foi causada por motivos internos, mentais. Isso era sempre refutado pelo próprio Verto, mas os criados diziam que ele delirava às vezes e chamava por seu filho e por sua neta. Próximo de completar dois anos de fuga, o velho empalideceu e os médicos e padres noticiaram a Ricken que ele estava morto.
Ele, é claro, entristeceu-se com a morte do pai, mas mudou-se para a mansão Rottenhearth tão logo que soube da sua morte. Se ele tivesse um irmão, as autoridades provavelmente protestariam contra a sua posse, mas ele era o único herdeiro dos Rottenhearth, por isso ficou com a casa. Lá, o seu talento de forja foi expandido: era uma oficina muito melhor equipada, herança de várias gerações de ferreiros. A guerra em Edron foi motivo para que seus negócios se ampliassem até a ilha; ele chegou até a comprar uma galé mercante para transportar seus produtos, que fora saqueada mais tarde quando estava na posse de Pavol Rottenhearth.
Quando tinha quatro anos e meio, Vitória morreu; estava magra e sua perna sobressalente crescia bastante. Era uma morte anunciada: desde que eles fugiram alguns anos antes, os médicos alertavam sobre o risco que a garota corria. Até mesmo em seu parto recomendou-se que ela fosse morta, como eu já escrevi aqui. Na época, Ricken havia completado 20 anos e ficou completamente comovido pela sua morte, muito mais do que com o falecimento de Verto. É costume dos Rottenhearth cremar o corpo dos familiares mortos e forjar uma espada na qual se misturam as cinzas; a espada seria de uso próprio da família, para as raras guerras a que eram convidados. Ricken usou aquela espada para o resto de sua vida, mesmo após a morte de Catarina, a quem tanto amava. Sua tristeza constante pareceu dar mais qualidade ao seu trabalho: quem visse as armaduras de placas, notaria que elas tinham vida, algo que seus antecedentes não conseguiam colocar em suas peças de aço.
Os Rottenhearth ganhavam fortunas sobre o novo estilo de Ricken. Catarina deu a luz a mais três crianças saudáveis, o que amenizou bastante a dor do pai. De início veio Sirila, três anos depois chegou Barto e mais dois anos depois nasceu Valsa, cujo parto foi fatal para a mãe. Mas Ricken não pareceu sentir tanto a morte da esposa como sentira de Vitória – talvez porque ele tivesse criado uma imunidade imperfeita contra a morte de parentes. É claro que ele ficou durante dois meses sentido, apenas consolado pelo pequeno Pavol, que na época tinha apenas 6 anos de idade. Logo ele transferiu todo o amor puro que tinha por Catarina nos seus quatro filhos, e pôde reerguer-se em poucos meses.
Iniciei a narrativa falando exatamente sobre Pavol, e durante muitos parágrafos dissertei longamente sobre seus ancestrais. Peço ao leitor que ele compreenda a necessidade da digressão para que eu possa descrever com maestria nosso Pavol.
Pavol mostrou-se tímido, desde pequeno. No início ele recebia toda a atenção do pai, mas não manifestou nenhum interesse pela forja como Ricken; uma decepção, na certa, mas nada que afete o convívio dos dois. Tudo ficou pior quando nasceu Barto e certificou-se de que seria ele quem daria continuidade à forja. O pai dava mais importância a ele do que a Pavol, e quanto mais ele tentava se enturmar com a família, mas eles o rejeitavam; naturalmente havia aqueles momentos de acolhimento, mas eram escassos. Pavol preferiu, então, por isolar-se ele mesmo; em alguns anos ele terminou de ler os livros da biblioteca particular da família (eram poucos os livros: os Rottenhearth não têm o costume de leitura assídua), e a partir daí pedia livros emprestados de amigos. Quando, aos 17 anos, viu que não conseguiria manter a tradição da forja, pediu ao pai a sua parte da herança e se mudou para a sua casa própria, no mesmo distrito da cidade. Apesar da proximidade geográfica, os Rottenhearth mantinham pouco contato com aquele ramo da família. Refiro-me a Pavol por ramo, pois três anos depois da mudança ele casou-se com uma mulher de boa família – chamada de Sônia Highboat –, e com ela teve três filhos: Verto, Lutaro e Guinor. Os Rottenhearth só foram chamados para o casamento de Pavol por educação, pois depois do evento eles raramente estabeleceriam contato direto. Por vezes Barto, arrependido de tê-lo excluído na infância, visitara-o em sua casa, mas era tudo bastante superficial e as visitas não duravam mais do que uma hora.
Enquanto Barto era o prodígio da família, Sirila era sua pior parte – Ricken chegou a agradecer os deuses por ele ser o herdeiro da família, não ela. Sirila era a primeira mulher da família a ter casamento arranjado, já que os Rottenhearth experimentaram o prestígio social como nunca o fizeram – ela iria se casar com Nikola Lurdengard. Mas uma vez, quando ela tinha 14 anos e poucos anos do casamento, ela foi vista se beijando com outro rapaz em algum canto de Venore, transgressão que foi punida por Ricken com belas palmadas. Mais tarde ela estava grávida. O pai, enfurecido, deu a ela a poção da lua e ela abortou o bebê; além disso, encerrou o casamento com Nikola Lundengard, deu-lhes uma desculpa esfarrapada e colocou-a em um convento de Carlin. Sirila vive no convento até hoje; os Rottenhearth não podem dizer se ela continua com travessuras ou se a ordem religiosa purificou sua alma.
Se a linhagem Rottenhearth não tiver se perdido daqui a um par de séculos, certamente eles irão se lembrar de Barto como uma extensão de Ricken. Quando Pavol tinha 9 anos de idade e Barto tinha 6, o pai deles atribuiu àquele a tarefa de produzir um único dardo para o dia seguinte. Durante longas horas Pavol empenhou-se em forjar o melhor quadrelo, faminto pela aprovação de Ricken. Quando todos dormiam, porém, Barto esgueirou-se até a forja e fez seu próprio dardo e, quando terminou, substituiu pelo trabalho do irmão mais velho. No dia seguinte, Pavol foi acordado com os elogios do pai, levantando euforicamente os braços, segurando em uma das mãos o quadrelo de Barto; o mais velho, notando que não era a peça que forjara, anunciou isso ao pai e Barto apresentou-se como o responsável pela brincadeira. Tiro e queda, como diziam os antigos: Ricken passou todas as atenções a Barto, e Pavol foi até alvo de broncas por causa de seu trabalho parco. Quando Barto ficou mais velho, entre a adolescência e a maioridade, seu ofício ficou comparável ao do pai quando morava na periferia. Ao se notar que sua destreza não mudaria a partir daí, verificou-se que toda a diferença de habilidade entre filho e pai havia sido convertida em criatividade: ele conseguira 1 milhão de moedas por vender uma ideia de forja a um anão. Barto era um grande amigo; conseguia tanto manter as antigas amizades quanto criar novas, sem parecer artificial. Nas tavernas, onde às vezes era encontrado, conseguia com poucas palavras fazer com que um completo estranho falasse com ele como se fosse um antigo amigo, em questão de minutos. Talvez o único que não se afetasse por seu carisma fosse Pavol, mas uma vez a cada dois meses Barto ainda tentava restabelecer a amizade com seu consanguíneo, ainda que as visitas durassem muito pouco e eram cercadas por um clima hostil. Barto casou-se com uma das garotas mais belas da cidade, Ana Clindot, embora não viesse de uma família respeitável. Sobre Ana Clindot, pouco se pode falar; era tímida para todos senão Barto e os filhos, Persol e Galra.
Logo no início, a caçula, Valsa, foi motivo de polêmica. Antes do parto, Ricken e Catarina concordaram em chamá-la de Valsa, em homenagem à esposa do patriarca da família. Porém, quando as parteiras viram que, após o parto da filha, Catarina sangrava bastante, foi unânime que, naquela tarde, ela morreria. Quando se certificou a sentença, Ricken quis chamar a filha pelo nome da mãe, como se ela fosse uma ressurreição de Catarina. Até os 4 anos ela foi chamada por esse nome, quando, em um pequeno movimento da garota, algum sorriso ou gritinho, ele notou que não se tratava de Catarina, e sim de outra pessoa – em homenagem à escolha de sua esposa, ela passou a ser chamada de Valsa. Houve algum rebuliço entre as autoridades, alegando que seu nome não poderia ser mudado em uma idade tão avançada, mas Ricken e todos os Rottenhearth passaram a chamá-la por Valsa e, em poucos anos, todos os documentos constavam o nome Valsa. Quanto a Valsa em si, não se pode dizer muito: Ricken planejava um casamento com certo rapaz, mas depois dos acontecidos com Sirila, desistiu de prendê-la a um homem e deixou claro que ela estava livre para escolher o marido. Assim, ela conheceu um rapaz chamado de Guy Lanval, aprovado pelo pai, e eles se casaram dois anos depois.