Capítulo I
Jantar cancelado
Os pastos e as colinas ao pé da floresta, a alguns quilômetros da cidade, além do cinturão agrícola que a rodeava; eram banhados pela luminosidade prata da lua e, embora seu brilho clareasse a orvalhada relva, sob as copas das árvores reinava o calor e o negrume total. As folhas farfalhavam ao alto perante o vento calmo e frio da noite enquanto alguns esquilos e lobos corriam sobre as ervas e restos de plantas no chão.
Em meio à escuridão e silêncio mórbidos, uma criatura de vestes escuras e pele tão pálida que nem mesmo o breu total conseguia ocultá-la parecia flutuar como uma assombração por entre os troncos. Nas mãos, um
Magnum Colt Python, cabo de madeira, cano prateado e mais longo do que o de um revólver comum, capacidade para oito tiros e mira a laser; seu gêmeo aguardava excitado no coldre sob o sobretudo enquanto o fino feixe vermelho varava a escuridão a procura de um alvo.
O farfalhar mais agitado das podres e úmidas folhas denunciou a presença da futura vítima, o laser varreu a escuridão e encontrou o dorso do animal. Um disparo, um cruciante gemido e um sorriso. Após o eco ter se dissipado, o atirador guardou o revólver, se aproximou vagarosamente e observou o lobo inerte, uma grande parte do lombar próximo ao pescoço havia sido arrasada pela bala e o sangue espirrava em leves esguichos, e o que não era absorvido pela terra se acumulava em pequenas poças sobre as folhagens. Os olhos da criatura cobiçavam o cadáver com um olhar de satisfação e sede, ela se agachou e tocou com o indicador em um vegetal que acumulara sangue e depois o levou a boca, lambendo os lábios em prazer, fazendo-os estalar.
Ela tocava a ferida do lobo com alguns dedos quando ouviu a respiração abafada nas suas costas. Sacando os revólveres, deitou de costas em cima do cadáver e apontou as armas para o outro ser, um dos feixes subiu até desaparecer nas copas, mas seu par deslizava pela face daquele homem. A pele tão branca quanto a da criatura que ali caçava, tinha a face quadrada e com poucos cabelos, seu nariz pequeno e fino se contrapunha com as rugas de sua testa, sobrancelhas fartas e demais traços grossos. Tinha uma aparência parruda devido à combinação de seus um metro e sessenta com sua barriga, – que quase não permitia que os botões de seu paletó e camisa brancos se fechassem - a qual ele insistia em comentar que era “calo sexual” e, ironicamente, tinha uma prole de dezessete filhos com nove mulheres diferentes.
- Ah... Otto – disse suspirando – é você.
- Vamos, Chacal, levante-se daí e venha conosco. – disse ao estender a mão – Temos um problema.
- Estou jantando. – Ele ficava de pé.
- Nós também queremos sangue, mas antes temos que nos reunir.
- Vocês também bebem sangue!? Nossa! Todo mundo virou vampiro agora!
- Deixe de ser idiota, Chacal. – disse um outro homem mais afastado – Se viemos atrás de você é porque é importante, ninguém te suporta mais.
- Agora eu posso chorar no seu ombro, Léo? – ele agora olhava para o lobo abatido com tristeza – Me fizeram perder uma bela refeição, vamos logo.
O quarteto caminhou para fora da floresta, com árvores ligeiramente espaçadas, até chegar a um carro popular preto com vidros filmados, Otto e Léo entraram na frente enquanto o Chacal e a outra criatura sentaram no banco de trás. O carro havia dado partida e já tinha andado algumas centenas de metros quando Otto virou pra trás, olhando para o passageiro.
- Porque você insiste em vir se alimentar aqui?
- Não vou me alimentar de sangue de leprosos e aidéticos moribundos.
- Mas são as regras, Chacal.
O Chacal apenas observava através da janela escura a floresta, depois as colinas e mais tarde as plantações de trigo e arroz serem deixadas para trás, não falou mais nada e só ouviu seus companheiros conversarem sobre mulheres e locais para caça até entrarem na cidade e se dirigirem à sede. Era cerca de três e trinta da madrugada de terça-feira, pelas ruas mais movimentadas via-se algumas prostitutas – mulheres ou não – andando com suas minúsculas saias e exagerados decotes, se oferecendo aos poucos carros que passavam e por vez ou outra um grupo de pessoas que faziam barulho demais, até entrarmos em algumas laterais muito menos iluminadas do que as avenidas.
Após dirigir por mais algumas ruas o carro parou frente a um portão enferrujado, Otto baixou o vidro e apertou o interfone –
“É o ministro Otto” – e segundos depois o ranger das dobradiças anunciou a permissão para a entrada. O automóvel seguiu por uma pequena ruela e virou para a direita, se dirigindo aos fundos da casa e parando no estacionamento.
Os quatro homens entraram pelos fundos e encontram o saguão de entrada abarrotado de vampiros que conversavam em baixo tom, alguns de sobretudo, terno ou capas que eram acompanhados de chapéus, cartolas e até mesmo bonés, independente da posição na casta ou do que vestiam, um a um se calou para observar os ministros. Otto entrou na frente, com sua gravata vermelha saltando aos olhos pelo contraste com as vestimentas brancas, e logo atrás Chacal e os outros dois, os olhares fixaram-se na dupla da frente que subia as escadarias no centro do salão em direção à biblioteca.
O Chacal era um dos três líderes das operações especiais, tinha o corpo malhado e as costas largas, com cerca de um metro e oitenta, sua cabeça era desproporcional ao corpo e as duas entradas em seus cabelos negros e rentes ao couro aumentavam ainda mais o tamanho dela, o nariz adunco fazia par perfeito com a inexpressividade que ele mantinha em sua face. A boca levemente puxada para baixo e as rugas nas bochechas davam um ar arrogante ao vampiro.
Os outros dois que os acompanhavam eram imagens decorativas e logo se misturaram com a multidão. Quando os ministros alcançaram o topo da escadaria os cochichos explodiram outra vez pelo cômodo e todos arquitetavam motivos para aquele encontro ou comentavam sobre a fama dos integrantes do parlamento.
O saguão era circular, mas conseguia habitar com facilidade os cerca de sessenta vampiros presentes ali, as lajotas brancas e pretas no chão eram foscas e já não mais reluziam as dezenas de lâmpadas do lustre pendurado no alto da cúpula, nem as anexas nas paredes. A porta de entrada era de ferro, mas seu portal de gesso esculpido, ao seu lado havia duas grandes janelas com vidraças filmadas, que eram ocultadas por uma cortina de ferro antes do dia amanhecer. Algumas portas de madeira e portais que davam para os corredores forneciam acesso aos demais cômodos da mansão.
Os dois agora andavam em um corredor parcamente iluminado, cujo chão era composto com lajotas de madeira. Ao chegar na segunda e última porta da parede esquerda, Otto deu três batidas nela:
“Chegamos!” e a resposta foi a voz grave, mas feminina, de Victória
“Entrem logo!”.
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Imagem da Magnum Colt Python:
http://www.historical-firearms.co.uk/acatalog/DX1061.jpg